quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Conto "Nóis Mudemo" - Fidêncio Bogo

 Lúcio Rodrigues Barbosa, o menino deste conto (que não continuou os estudos), depois de dezessete anos, reencontra a sua professora

Fidêncio Bogo
Fidêncio Bogo

   O ônibus da Transbrasiliana deslizava manso pela Belém-Brasília rumo a Porto Nacional. Era abril, mês das derradeiras chuvas. No céu, uma luazona enorme pra namorado nenhum botar defeito. Sob o luar generoso, o cerrado verdejante era um presépio encantador, todo poesia e misticismo. Mas minha alma estava profundamente amargurada. O encontro daquela tarde, a visão daquele jovem marcado pelo sofrimento, precocemente envelhecido, a crua recordação de um episódio que parecia tão banal… Tentei dormir. Inútil. Meus olhos percorriam a paisagem enluarada, mas ela nada era para mim que um pano de fundo de um drama estúpido e trágico.

  As aulas tinham começado numa segunda-feira. Escola de periferia, classes heterogêneas, retardatários. Entre eles, uma criança crescida, quase um rapaz.

    - Por que você faltou esses dias todos?

    - É que nóis mudemo onti, fessora. Nóis veio da fazenda.

    Risadinhas da turma.

    - Não se diz “nóis mudemo” menino! A gente deve dizer: nós mudamos, tá?

    - Tá fessora!

    No recreio as chacotas dos colegas: Oi, nóis mudemo! Até amanhã, nóis mudemo!

    No dia seguinte, a mesma coisa: risadinhas, cochichos, gozações.

    - Pai, não vô mais pra escola!

    - Oxente! Módi quê, meu fio?

    Ouvindo a história, o pai coçou a cabeça e disse:

    - Meu fio, num dexa a escola pruma bobagem dessa! Não liga pras gozação da mininada! Na cidade é assim mermo.  Logo eles esquece.

    Não esqueceram.

    Na quarta-feira, dei pela falta do menino. Ele não apareceu no resto da semana, nem na segunda-feira seguinte. Aí me dei conta de que eu nem sabia o nome dele. Procurei no diário de classe. Chamava Lúcio – Lúcio Rodrigues Barbosa. Achei o endereço. Fui lá, uma tarde.  Longe, um dos últimos casebres do bairro, um barraco apertado e coberto de brasilite.  O rapaz tinha partido no dia anterior para casa de um tio, no sul do Pará.

    - Boa tarde, senhor! O Lúcio está?

    Não, senhora. Ele foi ônti pra casa de meu irmão no sul do Pará. - É, fessora, meu fio não aguentou a gozação da mininada! Eu tentei fazê ele continuá na escola, mas não teve Jeito não. Ele tava chatiado por dimais. Bosta de vida! Eu devia di tê ficado na fazenda coa famía. Na cidade nóis não tem veis. Nóis fala tudo errado. Agora meu fio encafifado lá naquele cafundó… Ó meu Deus! E abaixou a cabeça entre as mãos trementes.

    Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer. Engoli a seco e me despedi.

    - Contei para a Diretora o acontecido.

    Ela falou:

    - Liga não! Esse povo é assim mesmo.

    O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total esquecimento, ao menos de minha parte.

    Uma tarde calorenta, num povoado à beira da Belém-Brasília, eu ia pegar o ônibus, quando alguém me chamou. Olhei e vi, encostado num poste, acenando e sorrindo para mim, um rapaz pobremente vestido, barba rala, magro,  amarelado, curvado, com aparência doentia.

    - O que é, moço?

    - A senhora não se lembra de mim, fessora?

    Olhei para ele e fiquei pensativa. Pensei, por um momento, nos meus longos anos de sacerdócio, digo, de magistério... Tudo muito escuro. Um mau pressentimento tomou conta de mim.

    - Não me lembro não, moço. Você me conhece? De onde? Foi meu aluno? Como se chama?

    Para tantas perguntas, uma resposta breve, mas para mim, arrasadora:

    - Eu sou o “Nóis mudemo”, fessora, lembra?

    Santo Deus! Comecei a tremer.

    - Sim, moço. Agora lembro. Como era mesmo o seu nome?

    - Eu sou Lúcio - Lúcio Rodrigues Barbosa.

    - O que aconteceu com você, Lúcio? 

    Como um dique que arrebenta, o rapaz soltou a língua, numa enxurrada de tristes recordações.

    Ah! Fessora! É mais fácil dizê o que não aconteceu. Comi o pão que o diabo amasso. E êta diabo bom de padaria! Fui garimpeiro na Serra Pelada. Fui boia-fria, um “gato” me arrecadou e levou num caminhão pruma fazenda no meio da mata. Lá trabaiei que nem escravo durante um tempão, Dormi no chão que nem porco. Passei fome, fui judiado de todo jeito, fui baliado quando conseguir fugi. Peguei tudo quanto é doença. Até na cadeia já fui pará. Nóis ignorante, lá da roça, às veis fais coisa que a gente nunca pensou em fazê. A escola fais uma farta danada... Eu num devia tê saído daquele jeito, fessora, mais não aguentei as gozação da turma. Eu vi logo que nunca ia consegui falá direito. Fazê o quê? Ainda hoje não sei. Escola num é feita para gente como eu.

 Meu Deus! Aquela revelação me virou pelo avesso. Foi demais para mim. Descontrolada, comecei a soluçar convulsivamente. Como eu podia ter sido tão burra e má? E abracei o rapaz. Ou, pelo menos, o que restava do rapaz que me olhava atarantado.

    O ônibus buzinou com insistência.

    - O rapaz afastou-me de si suavemente.

    - Chora não, fessora! A senhora não tem curpa.

    Como? Eu não tenho culpa? Deus do céu!

    Entrei no ônibus apinhado. Cem olhos eram cem flechas vingadoras apontadas para mim. O ônibus partiu. Pensei na minha sala de aula. Eu era uma assassina a caminho da guilhotina.

    Hoje tenho raiva da gramática. Eu mudo, tu mudas, ele muda, nós mudamos... Super usada, mal usada, abusada, ela é uma guilhotina dentro da escola. A gramática faz gato e sapato da língua regional - a língua que a criança aprendeu com seus pais e irmãos e colegas – Assim ela se torna o terror dos alunos. Em vez de estimular e fazer crescer, comunicando, ela reprime e oprime, cobrando centenas de regrinhas estúpidas para aquela idade.

    E os lúcios da vida, os milhares lúcios da periferia e do interior, barrados nas salas de aula: “Não é assim que se diz, menino!” Como se o professor quisesse dizer: “Você está errado! Os seus pais estão errados! Seus irmãos, amigos e vizinhos estão errados! A certa sou eu! Imite-me! Copie-me! Fale como eu! Não seja você! Renegue suas raízes! Diminua-se ! Desfigure-se! Fique no seu lugar! Seja uma sombra!”

    E siga desarmado para o matadouro da vida...

(In memoriam Fidêncio Bogo)